quarta-feira, 22 de junho de 2011

"O POVO DAS CONCHAS" - OS SENHORES DO LITORAL:


“Em Balneário Camboriú, os primeiros habitantes foram os índios que moravam na praia de Laranjeiras. Este sítio arqueológico foi prospectado pelo Padre Dom João Alfredo Rohr. Pelas características da Praia de Laranjeiras, ela é protegida do vento sul. Na década de 1970, a Prefeitura solicitou uma verba para construir uma estrada que ligasse a Praia de Laranjeiras ao município. Porém, antes disso, já houve achado de esqueletos. Mas, como iam mexer nesse patrimônio todo, foi chamado o arqueólogo de fama nacional e internacional, o padre Dom João Alfredo Rohr. Ele fez a prospecção e constatou que toda a praia era um sítio arqueológico. Isso foi feito através do Carbono 14; onde se descobriu que a ocupação mais antiga era de 4.900 anos. Os achados estão em exposição no Museu.” (Entrevista com Gert Hering. Projeto Memória. Informativo MEMPI– Arquivo Histórico de Balneário Camboriú). 

Esse trecho de uma entrevista, publicada no Informativo do Arquivo Histórico de Balneário Camboriú, despertou nossa curiosidade em relação aos primeiros habitantes da praia; e nos induziu à pesquisa. Partimos, então, em busca de históricas respostas.

A PRÉ-HISTÓRIA DO LITORAL CATARINENSE:

Desde a segunda metade do Século XX, a pesquisa arqueológica vem-se debruçando sobre o estudo sistemático da ocupação da costa brasileira, por povos pescadores e coletores; que se instalaram na faixa litorânea, por volta de 4.500 a.C. E o principal vestígio dessa ocupação é um tipo de sítio arqueológico denominado Sambaqui.

A palavra Sambaqui deriva do Tupi “tamba” (conchas) e “ki” (amontoado); e pode ser definido, etimologicamente, como “monte de conchas”.

Os Sambaquis representam um tipo de sítio arqueológico formado por inúmeros vestígios de ocupação humana, como a presença maciça de conchas, carapaças de moluscos, restos de peixes e outros animais; associados a instrumentos líticos, utensílios, adornos e esqueletos humanos; restos de fogueiras e estruturas habitacionais.

Um dos painéis explicativos do Museu do Sambaqui, em Joinville, traz o seguinte texto: “Os sambaquis são sítios arqueológicos que apresentam vestígios culturais em meio a camadas com alta densidade de conchas e moluscos, trazidos pelo homem. Distinguem-se na paisagem pela altura e forma; possuem dimensões variáveis; sendo que os sambaquis do Estado de Santa Catarina são os maiores do Brasil; atingindo até centenas de metros de comprimento e com altura máxima de 30 metros. São constituídos por restos de animais (principalmente moluscos, crustáceos, peixes, mamíferos, aves, répteis); esqueletos humanos; artefatos de pedra, osso, concha e dente; fogueiras e outros restos de atividades humanas. Concentram-se, predominantemente, nas regiões litorâneas lagunares, que favorecem o desenvolvimento de grandes bancos de moluscos – fonte de alimentação dos homens pré-históricos. No litoral de Santa Catarina, os Sambaquis ocorrem, aproximadamente, entre 3.000 a.C e 1.000 anos d.C”

A tese mais aceita sobre a formação dos Sambaquis entende que a sucessão de comunidades litorâneas foi responsável pelo acúmulo de conchas; ossos de peixes e outros restos de alimentos; próximos a vestígios de habitação e ossadas humanas. Com o passar do tempo, esses depósito alcançaram grandes alturas, que deram origem aos Sambaquis – verdadeiros arranha-céus pré-históricos.

A formação dessas comunidades revela a transformação dos hábitos alimentares do Homem Pré-Histórico das Américas. Com o passar do tempo, a caça e a coleta foram perdendo espaço para uma dieta marcada pelo consumo sistemático de peixes, crustáceos e outros frutos do mar. Examinando a estrutura interna e os terrenos próximos aos Sambaquis, percebe-se que essas comunidades desenvolveram, de forma bem acentuada, o artesanato, a escultura e a pedra polida. A escolha do local também revela uma característica importante de um assentamento de Sambaqui; evidenciando dois ambientes clássicos: a proximidade com o mar – nas cercanias de lagoas ou desembocaduras de rios; e a fontes potáveis de água doce.

A HISTÓRIA NAS ALTURAS – OS SAMBAQUIANOS:

O litoral brasileiro apresenta alguns “edifícios” construídos por sociedades pré-históricas que aqui viveram, há aproximadamente 8.000 anos. A dimensão dessas edificações compara-se a um prédio de 10 andares, equivalente a 30m de altura; com a grande diferença que, ao invés de aço, vidro e cimento, essas construções milenares se formaram a partir do acúmulo de milhares e milhares de conchas.

Por muito tempo, os Sambaquis foram considerados grandes lixões e depósitos de conchas. No entanto, a partir de inúmeros estudos realizados em torno dos “sambaquianos”, novos olhares foram lançados sobre essas sociedades, construtoras de verdadeiros “arranha-céus” pré-históricos.
Pesquisas recentes demonstram que os Sambaquianos viviam em uma sociedade relativamente sedentária. Ao contrário do que se possa pensar, eram organizados em relação à divisão de tarefas e lideranças de comando.

Pela significativa dimensão de um Sambaqui, não é difícil supor que um número significativo de pessoas participava desses grupos e habitavam o assentamento. Mais do que isso, a alimentação à base de peixes, mariscos e outros frutos do mar indicavam uma alimentação estável.

É importante lembrar que a construção desses grandes amontoados de conchas exigia trabalho coletivo; e, por isso, é muito provável que pessoas de status interagiam nesses grupos. Alguns sepultamentos encontrados em Sambaquis são mais elaborados que os demais; o que leva os pesquisadores a concluir que essas pessoas possuíam maior importância no grupo.

A verticalização dos Sambaquis – variando entre 2m e 30m – inquieta pesquisadores no que tange à simbologia: o fato de se destacar na paisagem, demarcando poder e mostrando superioridade sobre outros povos, colocariam os Sambaquis catarinenses como uma das primeiras expressões da chamada “arquitetura de dominação.”  Dentre as muitas formas de “chegar às alturas”, os Sambaquis representam uma época na Pré-História do litoral brasileiro.

Abaixo das conchas milenares, é possível identificar inúmeras fontes que auxiliam, sobremaneira, a compreender a forma de vida dessas populações. Em meio aos inúmeros utensílios identificados, existem peças que necessitariam de 200 horas de trabalho para serem fabricadas; o que sugere a existência de artesão, nestes grupos.

O apogeu do “Povo das Conchas” parece ter sido entre 4.000 e 3.000 atrás; e uma série de fatores teria contribuído para o declínio dos Senhores do Litoral.  A chegada dos povos agricultores do interior, economicamente mais fortalecidos, poderia tê-los absorvido ou eliminado; bem como uma miscigenação entre sambaquianos e índios – que por aqui chegaram há aproximadamente 2.500 anos – são algumas das hipóteses levantadas.

Decifrar o destino dessas comunidades ainda é um grande desafio. É muito provável que tenham sido disseminadas ou acabaram se misturando às culturas tupi-guaranis, que avançaram do norte e do sul do país, rumo ao litoral, no início da Era Cristã. E as incertezas se perpetuam, uma vez que a destruição dos sambaquis vem sendo, gradativamente, assinalada.

Desde o Século XVI, as camadas de conchas vêm sendo removidas, por conta de exploração dessas jazidas arqueológicas para a fabricação de cal. A devastação aumentou com a abertura de estradas e com o crescimento das cidades litorâneas, a partir da década de 60. Com isso, grande parte dos Sambaquis do litoral brasileiro encontra-se, praticamente, extinta; e os que sobrevivem, acusam péssimo estado de conservação.  

O SAMBAQUI DAS “LARANJEIRAS”:

A constatação da presença humana no litoral catarinense pode ser considerada recente. Os vestígios humanos mais antigos catalogados remontam 5.000 anos de ocupação; sempre ligados, diretamente, à cultura dos Sambaquis.

Em Balneário Camboriú, a História não foi diferente. Na década de 70, um grande sítio arqueológico foi identificado na Praia de Laranjeiras. Sob o comando do Padre João Alfredo Rohr, as escavações do Sítio Arqueológico das Laranjeiras foram realizadas entre 1977 e 1979; resultando na descoberta de 165 sepultamentos, incluindo crianças.

Algumas dessas ossadas encontram-se expostas no Museu do Parque Ciro Gewaerd – antiga SANTUR. Dentre os objetos encontrados, destaca-se a presença de duas índias grávidas, cujos fetos são perfeitamente reconhecíveis, em seus ventres. Estudiosos nos dão conta de que são dois raros exemplares de apenas quatro existentes  no mundo.





Pesquisa e Elaboração: Kika

Fontes:
MADU GASPAR. Sambaqui – Arqueologia do Litoral Brasileiro.
JAMES DADAM. Uma cidade na Memória.
ISAQUE DE BORBA CORREA. História de Duas Cidades: Camboriú e Balneário Camboriú

Sites:
www.brasilescola.com
www.caminhosancestrais.com.br
www.mundoestranho.abril.com.br
http://julianobernardes.blogspot.com

Fotos:
Arquivo Histórico de Balneário Camboriú.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

domingo, 20 de fevereiro de 2011

TEM UM QUILOMBO NA "MARAVILHA DO ATLÂNTICO SUL" (SC):

     
                                                                             José Bento Rosa da Silva.

Com graduação, especialização, mestrado e doutorado em História. Pesquisador do Núcleo de Estudos Africanos da Universidade do Porto (Portugal)  e  do Núcleo de Estudos das Relações Interétnicas da Universidade Federal de Santa Catarina (Nuer/UFSC). Foi diretor do Arquivo Público de Itajaí(SC) no período de 2005/2006.Foi professor na rede estadual e particular de ensino de primeiro segundo e terceiro grau em Itajaí, Balneário de Camboriú e Brusque(SC).Atualmente é professor de História da África na Universidade Federal de Pernambuco.

Resumo:
O artigo investiga uma comunidade remanescente de quilombos no litoral norte do Estado de Santa Catarina, na cidade de Balneário de Camboriú, o mais importante balneário turístico do sul do Brasil. A comunidade passa pelo processo de reconhecimento do governo federal como remanescentes de quilombos, uma vez que atendem aos requisitos estabelecidos pelos órgãos competentes. O artigo aponta para dois momentos na história da comunidade: antes e após a construção da BR 101, no início dos anos setenta do século passado, quando a rodovia cortou a comunidade ao meio e posteriormente o momento da duplicação da mesma, quando novamente os quilombolas foram vitimados.


 Vista Parcial da Praia
Acervo: Kika (2010)


Balneário de Camboriú já foi anunciada em folders e sites turísticos como: “A Copacabana do Sul do Brasil”, e mais recentemente como “A Maravilha do Atlântico Sul”, “A Pérola do Atlântico Sul”, dentre outros. Num dos sites encontrei:

Balneário Camboriú, localizada no litoral centro norte de Santa Catarina, é um dos destinos turísticos mais visitados do Brasil, em especial por catarinenses, gaúchos e paranaenses. Na temporada e nos meses de março e abril também é expressiva a presença de paraguaios, chilenos e argentinos.

Nas duas últimas décadas a cidade passou por um crescimento vertiginoso, hoje a população é superior a 120 mil habitantes, sendo que cerca de 15 mil são estudantes universitários de todo o País e mesmo do exterior. Cada vez mais pessoas com bom poder aquisitivo decidem morar aqui na praia, porque o clima é bom o ano todo e a estrutura de comércio, saúde, educação e lazer bastante desenvolvida.

Na verdade o município ganhou notoriedade na década de sessenta, quando emancipou-se de Camboriú, tendo como arcabouço econômico o turismo, como evidenciou Glória Alejandra:

Balneário Camboriú desde 1959 era Distrito de Camboriú, mas o rápido crescimento populacional e abertura de locais comerciais criaram-lhe autonomia econômica e posteriormente política. Vários hotéis foram construídos, casas, edifícios com apartamentos que eram comprados para morar ou para locar nos meses de verão. Segundo Magda Lee, para Balneário Camboriú o mar foi o elemento motor que possibilitou seu desenvolvimento econômico e turístico. O mar passou a ser visto neste momento, como um local não só de lazer.

É nesta cidade cantada em versos e prosas pela ‘indústria do turismo’ que se encontra uma comunidade remanescente de quilombos, que é o motivo desta breve investigação histórica, sobretudo através das fontes orais, e de alguns documentos disponíveis num dos cartórios da cidade.

A origem do nome da localidade, Morro do Boi, segundo relato dos quilombolas, estaria relacionado com a passagem dos tropeiros, que no passado dirigiam-se do Planalto Central de Santa Catarina para o sudeste. Estes teriam perdido uma rês que caíra num precipício e nunca foi recuperada. Relatos de moradores de vários bairros de Itajaí, cidade vizinha de Balneário Camboriú, corroboram o caminho dos tropeiros.

Na memória dos moradores dos quilombolas do Morro do Boi há um divisor de águas: antes da construção da BR 101 e depois. A BR foi construída no início dos anos setenta cortando a comunidade ao meio, provocando a seca das nascentes naturais, fonte dos seus recursos hídricos, e até hoje não foram indenizados. As lembranças da cachoeira, onde se tomava banho, se lavava roupas, pescava, é constante nas narrativas, quando se pergunta acerca do passado; bem como as brincadeiras com o boi, denominadas boi do campo, que relembra de certa forma as brincadeiras advindas do boi Ápis do antigo Egito, passando pelo mediterrâneo, chegando ao bumba-meu-boi do Maranhão, da polêmica farra do boi catarinense enfim, um fenômeno de longa duração, na expressão de Braudel.

Numa entrevista com a matriarca dona Guida, juntamente com o filho Altair e o genro Acácio, ficou evidente que as benesses do progresso simbolizadas na construção da BR 101 não contemplaram a comunidade em nenhuma das duas vezes, ou seja, no momento da sua construção no início dos anos setenta, tampouco no momento da sua duplicação na década de noventa. Esta entrevista foi realizada no ano de 1998, quando se buscava a organização da comunidade nos parâmetros do conceito de remanescentes de quilombos, segundo os pressupostos legais das disposições transitórias da Constituição Federal de 1988.

Perguntado sobre os moradores antigos, falou-se da família de uns negros de sobrenome Rodrigues, mas que eram apelidados de benguelas, sobretudo o Mané Domingos. Não souberam a razão pelas quais esta família era denominada de benguelas, mas isso indica a ascendência de matriz africana, pois os documentos de compra e venda de escravos falam ou registram escravos da nação benguela. Aliás, algumas famílias, como a de Acácio, herdaram terras de brancos descendentes de antigos senhores de escravos como os Rebello. Os registros de compra, venda e aluguel de imóveis e semi-moventes (como eram tratados os escravos) do Cartório Waltrich contém informações sobre tais transações:

Escritura de contrato de locação de serviço que faz Tomaz, liberto, com o senhor José Joaquim Rebello como abaixo se declara:

Saibam quanto este público instrumento de escritura de contrato de locação e serviço virem, que sendo o ano do Nosso Senhor Jesus Cristo de 1875, aos 24 dias do mês de março do dito ano, em meu cartório compareceram presentes as outorgantes deste instrumento, a saber, como locador José Joaquim Rebelo e como locatário Tomaz, liberto, de cor parda, de idade 25 anos mais ou menos, escravo de Manoel Antonio da Costa, morador do município de Tijucas Grande e reconhecidos de mim Benjamim de Souza Vieira escrivão do juiz de paz das testemunhas abaixo assinada.

Pelo referido Tomaz foi dito e reclamado que hoje podendo dispor de sua pessoa livremente, tem contratado com o dito senhor Joaquim José, digo, o senhor José Joaquim Rebelo pela quantia de duzentos e quarenta mil réis os ditos serviços os quais durará por tempo de sete anos, ficando locador obrigado a tratar o locatário em suas enfermidades logo que restabeleça sendo por mais tempo de mês, será obrigado o locatário a servir por mais tempo te completar os sete anos do contrato (folha 19 v) dando o locador a roupa para o serviço durando o tempo do dito contrato. Ele declarando mais, que poderia alugar a qualquer pessoa dentro desta província com as mesmas condições, e pelo locatário foi dito que aceitaria todas essas condições acima declaradas.

E sendo lido aos outorgantes notificaram e assinaram com as testemunhas Carlos Maria e José Batista de Almeida, e pelo locatário não saber ler nem escrever, assim Lazáro José Rebello todas reconhecidas de mim Benjamim de Souza Vieira escrivão do juiz de paz que escrevi e assino.

Acácio relatou que seu pai fora criado por Tomás Rebelo, de quem herdou as terras, mas sem especificar em que condições seu pai fora criado; mais uma coisa é certa, os membros da família Rebello foram poderosos senhores de escravos na região de Porto Belo, como pude observar nos registros de compra e venda de escravos do cartório de Porto Belo, a exemplo do que se segue:

Escritura de venda fixa de um escravo crioulo de nome Adão, que faz José Silva Rebello, a Antônio Moreira da Silva, como abaixo se declara.

Saibam quantos o presente instrumento de escritura de venda fixa virem, que sendo no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus de Cristo, de mil oitocentos e setenta e um, aos seis dias do mês de abril do dito ano, nesta freguesia do Senhor Bom Jesus dos Aflitos de Porto Belo, termo da Vila de São Sebastião de Tijucas, Comarca de Itajaí da Província de Santa Catarina, em casa de residência de José Silva Rebello, eu escrivão vim a seu chamado, ali comparecem como outorgantes deste instrumento, a saber de uma parte como vendedor José da Silva Rebello, morador no Perequê, e de outra parte como comprador Antônio Moreira da Silva, morador nesta freguesia, reconhecidos de mim escrivão e das testemunhas adiantes nomeadas e assinadas pelos próprios do que dou fé, perante as quais pelo vendedor, me foi dito que ele era, senhor e possuidor de um escravo crioulo de nome Adão, cujo escravo vende com todos achaques novos e velhos presentes e ocultos, à pessoa do comprador, José Antônio Moreira da Silva, pelo preço e quantia de oitocentos mil réis, livre de siza para ele vendedor, cuja quantia de oitocentos mil réis o recebeu o vendedor, do comprador, ao fazer desta em moeda corrente( folhas 07) deste império, e em virtude do bom pagamento transferia na pessoa do comprador Antônio Moreira da Silva, todo o domínio, direito, ação, senhorio que no dito escravo tinha, para agora do presente entre si e seus herdeiros como fica sendo desta data em diante, e se obriga a fazer desta venda boa a todo tempo; e pelo comprador me foi dito perante as testemunhas que aceitava a presente compra com a condições declaradas, em seguida apresentou o bilhete da meia siza pelo teor seguinte:

N°12
Data 29 de março de 1871.

Estavam impressas as armas do império, pagou quarenta mil réis.
Coletoria das rendas províncias de Tijucas em 29 de março de 1871.
João José Vieira Nunes, o coletor.
O escrivão Francisco José dos Prazeres.
Depois desta escrita li as partes outorgantes que aceitaram e outorgaram e assinaram, o comprador e o vendedor, sendo testemunhas presentes, Francisco Machado Airoso e João Pereira da Cruz, reconhecidos de mim Antônio Sálvio de Souza Medeiros escrivão do juiz de Paz que escrevi

No mesmo Cartório Waltrick foi encontrado referências da família Da Graça, sobrenome da matriarca Guida, guardiã da memória da comunidade, indicando que a ascendência da mesma família está relacionada com escravos pertencentes a senhores da região.

Dona Guida e José Bento
Acervo: José Bento

Antes de a comunidade ser cortada pela BR 101, o Morro estava isolado, era um ‘verdadeiro sertão’ (corruptela de desertão), razão pela qual alguns moradores deixaram a localidade e mudaram-se para Itajaí(SC), Curitiba(PR), Santos(SP), Paranaguá(PR), Itapema(SC). Na expressão dos que ficaram: “saíram porque na roça não dava nada”, “era um local isolado” e “nunca mais voltaram”. Estas lembranças somam-se as dos moradores antigos já falecidos: Olga, Lotário, Canuto, Maneca, Siqueira, Pedro Maria, Ventura, entre outros.

A produção era de subsistência, como uma das características das comunidades remanescentes de quilombos de diversas regiões do Brasil. No caso específico, plantava-se a mandioca, café, milho, feijão, banana, cana. Comprava-se mesmo só o que não era produzido, como: sal, açúcar refinado para a confecção de guloseimas especiais, pois para o dia-a-dia, usava-se o açúcar mascavo por eles produzido. Trocava-se a produção local no comércio de Camboriú ou de Itapema, por carne fresca de gado, por tecido. Foi o momento de lembrar-se dos comerciantes tais como, Teotônio Passinho de Itapema e do João Morais do armazém de Camboriú, e do Isidoro Garcia, também de Camboriú.

Não há hoje no Morro mais nenhum dos engenhos de farinha ou de açúcar do passado, mas as memórias dos mais velhos que lá residem apontam onde eram localizados, fazendo-os lembrar com nostalgia o fabrico da farinha, da cachaça, bem como das festas, sobretudo na época de natal e páscoa.

Há na comunidade a senhora Gervásia, que de certa forma é temida por ser da umbanda, uma vez que a grande maioria professa a fé cristã católica, embora reconheçam que os antepassados tenham praticado religiões de matriz africana. Dona Guida disse que aprendeu a benzer com o seu avô, o ‘velho’ Leandro Cristino da Conceição, que morava em Camboriú, além de ter herdado do mesmo o conhecimento das plantas medicinais. E mais, Fabriciano, irmão de dona Guida, residente em Itajaí, é babalorixá. Ele, juntamente com dona  Guida, segundo seu filho Altair, em tempos passados andavam atrás de ouro enterrado que os sonhos e visagens vinham lhes revelar. Confessam entre risos que nunca encontraram por falta de coragem.

Outro registro que aponta para uma religiosidade híbrida é no que diz respeito ao rito de passagem da morte. Meses antes da entrevista um filho de dona Guida falecera, ocasião em que foi possível descobrir um rito praticado no presente que vem dos antepassados, conforme a descrição feita pela professora Ana Elisa que acompanha a comunidade no processo de reconhecimento da mesma como Comunidade remanescente de Quilombo. Diz ela:

Também tive contato com uma tradição da casa deles em dia de sepultamento. Depois que acontece o velório, que sempre fazem em casa e o corpo sai em cortejo fúnebre, a esposa do falecido, ou quando solteiro, a mãe, limpa a casa, atenção especial ao chão que é varrido e fecha toda a casa - portas e janelas -  que permanecem fechadas por sete dias.  No sétimo dia, antigamente rezavam o terço, e hoje, é rezada a missa de sétimo dia. Então abrem a casa e tudo volta à rotina, pois nesses sete dias a casa fica sempre fechada em sinal de luto, entram e saem somente pela porta dos fundos da casa. Fazem isso, pois acreditam que, se o espírito da pessoa que morreu resolve voltar para casa, encontra portas e janelas abertas, entrará e não descansará  nem dará sossego aos que moram na casa. Porém, se ao retornar encontrar a porta fechada, descansará no lado de fora da porta e seguirá seu caminho em paz.

As lembranças do trabalho na comunidade no passado remetem-se ao mutirão e ao sistema de coivaras mediado pelas cantigas de trabalho, características encontradas em outras comunidades remanescentes de quilombos pelo Brasil.

Quem trafega pela BR101, em direção do sul para o norte do Estado de Santa Catarina e vice versa, ou quem veraneia na “Maravilha do Atlântico Sul” raramente sabe das histórias subterrâneas dos africanos na condição de escravos e seus descendentes que existem no Morro do Boi. Histórias que aos poucos ressurgem do esquecimento qual Fênix das cinzas e que faz lembrar um provérbio Acã: “nunca é tarde para voltar e recolher o que ficou para traz”. Em minha opinião é isto que a comunidade quilombola do Morro do Boi está fazendo lentamente com o auxílio de alguns intelectuais orgânicos ligados às instituições, que buscam a plena cidadania dos historicamente discriminados na sociedade brasileira.

Referências:

LUNA, Gloria. Alejandra Guarnizo.  As ondas e o tempo: Uma análise sobre a transformação de um território. Praia brava (1970 – 2003), Itajaí, SC. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2004 (Dissertação De Mestrado Em História).
BASTOS, Rafael José de Menezes (Org.) Dionísio em Santa Catarina: Ensaio Sobre a Farra do Boi. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura; UFSC, 1993.
FLORES, Maria Bernardete Ramos. A farra Do Boi: Palavras, sentidos, Ficções. Florianópolis: UFSC, 1997.
Cartório Waltrick. Livros de Notas, n. 08.
Cartório de Porto Belo. Livro de Registro de Compra e Venda de Escravos, 1867.



quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

ASSIM ERA, NO PRINCÍPIO:


Em um primeiro momento, a história de Balneário Camboriú se confunde com a história de Camboriú; e não difere da maioria dos municípios que compõem a costa catarinense; e que fizeram parte da expansão açoriana, desde os Núcleos Primários de Colonização Açoriana – entre Desterro e Laguna – até os Núcleos Secundários que se estenderam ao longo de outras regiões litorâneas.

As primeiras informações sobre a presença humana na região estão ligadas à ocupação indígena; que remontam há aproximadamente 4.000 anos; cujos registros foram encontrados em um sítio arqueológico na Praia de Laranjeiras. Parte destes objetos está exposta no Museu do Parque Ciro Gevaerd, também conhecido como Parque da Santur, em Balneário Camboriú; e, segundo o Historiador Isaque de Borba Corrêa, dentre os vários esqueletos encontrados, registrou-se a rara presença de duas índias grávidas, cujos fetos são perfeitamente perceptíveis. Estudiosos registram que estes são dois dos quatro únicos exemplares existentes no Mundo.

No que tange à presença do homem branco, na região, as primeiras informações remontam ao Século XIX; quando os bandeirantes paulistas percorreram a área em busca de metais preciosos e captura de índios.

Segundo o Historiador Vilson Francisco de Farias, a ocupação efetiva da área do Rio Camboriú (originalmente, Cambriassu) deu-se na segunda década do Século XIX, a partir da concessão de 08 Sesmarias a 06 proprietários, com destaque para o senhor Baltazar Pinto Correa, que recebeu três lotes; conforme indica o quadro abaixo.



Como se vê, José Inácio Borges (1822), Baltazar Pinto Corrêa (1822), Manoel de Oliveira Gomes (1823), Bernardo Dias da Costa (1822), Félix José da Silva (1823), Aurélio Coelho da Rocha (1823), foram os primeiros moradores a se estabelecer na região de Camboriú com bens de raiz, ou seja, propriedades de terra concedidas através do Sistema de Sesmarias.

Revisitando alguns livros de História, lembramos que “Sesmaria foi um instituto jurídico português que normatizava a distribuição de terras destinadas à produção. O Estado, recém formado e sem capacidade para organizar a produção de alimentos; decide legar essa função a particulares.” O sistema surgiu em Portugal, durante o Séc.XIV, com a Lei da Sesmaria, de 1375; com o intuito de combater a crise econômica, agravada pela peste negra, em toda a Europa. 

Com a conquista do território brasileiro, efetivada a partir de 1530, o Estado Português decidiu utilizar o Sistema de Sesmaria, em terras do além-mar, com algumas adaptações. 

A principal função do Sistema de Sesmaria é estimular a produção. Quando o titular da propriedade não iniciava a produção dentro dos prazos estabelecidos; seu direito de posse poderia ser cassado. É na distribuição das terras que está a origem desse Sistema; e que acabou se convertendo em uma verdadeira política de povoamento estendido às Colônias Portuguesas. 

A Coroa Portuguesa tomou possa do território brasileiro por direito de conquista. Por isso, todas as terras descobertas passaram a ser consideradas terras virgens, sem qualquer senhorio ou cultivo anterior. A Carta patente dada a Martim Afonso de Souza é, unanimemente considerada como o primeiro documento sobre Sesmaria no Brasil. 

Nas terras de conquista, no entanto, as Sesmarias incorporaram uma exigência adicional: o pagamento do dízimo à Ordem de Cristo; que, na verdade, significava pagamento à própria Coroa. Mais do que um imposto cobrado, o dízimo servia como justificativa do processo de conquista. Era um ônus sobre a produção e incidia sobre a agricultura e pecuária coloniais. À bem da verdade, era um tributo eclesiástico que deveria ser pago até por quem não era proprietário de terras; já que, como cristão, todos os produtores deveriam contribuir para a propagação da fé. 

O Sistema de Sesmaria perdurou no Brasil até 17 de julho de 1822, quando a “Resolução 76” atribuída a José Bonifácio de Andrade e Silva, pôs fim a esse regime de apropriação de terras. A partir daí, a posse passou a ocorrer livremente no país, estendo-se até a promulgação da Lei de Terras, que reconheceu as Sesmarias antigas, ratificando formalmente o regime das posses; e institui a compra como única forma de obtenção de terras.

OS PIONEIROS:

Baltazar Pinto Correa - natural da cidade de Lamego, Concelho de Viseu, norte de Portugal – veio, inicialmente, para Porto Belo e, provavelmente, aportou por aqui em 1821, como requerente de uma Carta de Sesmaria, com o intuito de ocupar uma gleba de terra e iniciar um povoado. Ele recebeu a Carta de Sesmaria em 26 de setembro de 1826; depois de longos anos de embaraço na ridícula burocracia da Coroa, ao final do Governo de Dom João VI.

De acordo com o Historiador Isaque de Borba Correa, Baltazar Pinto Correa se estabeleceu “às margens do Rio Cambriassu, em um terreno devoluto de 400 braças de frente com 600 de fundo” ; e que terras cultiváveis – quesito para concessão de Sesmaria – só poderiam ser encontradas no Canto Norte da Praia.

Sendo assim, em um primeiro momento, Baltazar Pinto Correa estabeleceu-se no Morro do “Canto da Praia”; cujas terras ficaram conhecidas por Morro do Corrêa, Caminho do Corrêa e Praia do Corrêa. Em virtude desse pioneirismo, a região recebeu o nome de Vila dos Pioneiros; atual Bairro dos Pioneiros.

Partindo do Canto da Praia, a colonização continuou com Baltazar Pinto Corrêa formando um povoado, na outra margem do Rio Camboriú, e que ficou conhecido como Bom Sucesso, em virtude do êxito alcançado em suas expedições e empreendimentos agrícolas. Essa localidade, hoje conhecida como Bairro da Barra, foi a primeira sede do Município.

Posteriormente, atraídas pelo clima e pela fertilidade do solo, outras famílias chegaram. Dentre elas, destacam-se os irmãos José Francisco Garcia e Tomás Francisco Garcia; residentes no Ribeirão da Ilha. José Francisco adquiriu uma extensa área de terra na região onde hoje é a localidade de Rio Pequeno. Tomás Garcia, após inúmeras tentativas e muitos ofícios fracassados, aceitou cultivar algumas glebas de terra; onde às margens do Rio Pequeno – na atual localidade do mesmo nome – formou, com alguns familiares, o Arraial dos Garcia; para onde a sede do município seria transferida, a partir de 1890.

DE FREGUESIA A MUNICÍPIO – A GÊNESE DE DUAS CIDADES:

Como primeiro passo rumo à sua autonomia política, o Arraial de Camboriú foi elevado à categoria de Freguesia - através da Lei Provincial nº 292, de 07 de maio de 1849 – sob o título de Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso de Camboriú.

A criação da Freguesia estava ligada à licença para a construção da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Bonsucesso; regulamentada pela Lei Provincial nº 129, de 23 de março de 1840. Segundo Isaque de Borba Corrêa, a obra começou em 1849, por conta de inúmeros entraves; e só foi concluída em meados de 1860. Erguida em argamassa feita de cascas de ostras moídas e óleo de baleia, por mãos escravas, a Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso – atual Capela de Santo Amaro - é tombada pelo Patrimônio Histórico, como uma das Igrejas mais antigas de Santa Catarina.

Em 1866, o relatório do Presidente da Província – Adolfo de Barros Cavalcante – registrou dados que atestavam o progresso da então Freguesia de Nossa Senhora do Bom Sucesso de Camboriú:

População: Nacionais: 2782; Estrangeiros: 58; Católicos: 2826 (todos); Adultos: 1131; Menores: 1689; Solteiros: 1952; Casados: 786; Viúvos: 82.  Ocupação: Empregados Públicos: 4; Comerciantes: 19; Lavradores: 429; Artistas: 21. Sexo: Homens: 1412; Mulheres: 1378. Cor: Brancos: 2438; Pardos: 118; Pretos: 264. Condição: Livres: 252; Escravos: 293.

O Município foi instalado em 15 de janeiro de 1885, com sede no atual bairro da Barra; mas devido ao crescente progresso e a forte pressão política, a Vila dos Garcia – atual cidade de Camboriú – passou a ser o centro administrativo, a partir da Resolução 96, de 04 de fevereiro de 1890.

Elaboração: Kika

Fontes:

ISAQUE DE BORBA CORREA. História de Duas Cidades – Camboriú e Balneário Camboriú. Camboriú (SC). Gráfica Camboriú; 1985.

VILSON FRANCISCO DE FARIAS. De Portugal ao Sul do Brasil – 500 anos. Edição do Autor; 2000.

Site Camboriú Virtual: http://camboriuvirtual.com.br; consultado em 13/01/2010.

Site da Secretaria de Turismo de Balneário Camboriú: http://scturbc.com.br; consultado em 13/01/2010.