domingo, 20 de fevereiro de 2011

TEM UM QUILOMBO NA "MARAVILHA DO ATLÂNTICO SUL" (SC):

     
                                                                             José Bento Rosa da Silva.

Com graduação, especialização, mestrado e doutorado em História. Pesquisador do Núcleo de Estudos Africanos da Universidade do Porto (Portugal)  e  do Núcleo de Estudos das Relações Interétnicas da Universidade Federal de Santa Catarina (Nuer/UFSC). Foi diretor do Arquivo Público de Itajaí(SC) no período de 2005/2006.Foi professor na rede estadual e particular de ensino de primeiro segundo e terceiro grau em Itajaí, Balneário de Camboriú e Brusque(SC).Atualmente é professor de História da África na Universidade Federal de Pernambuco.

Resumo:
O artigo investiga uma comunidade remanescente de quilombos no litoral norte do Estado de Santa Catarina, na cidade de Balneário de Camboriú, o mais importante balneário turístico do sul do Brasil. A comunidade passa pelo processo de reconhecimento do governo federal como remanescentes de quilombos, uma vez que atendem aos requisitos estabelecidos pelos órgãos competentes. O artigo aponta para dois momentos na história da comunidade: antes e após a construção da BR 101, no início dos anos setenta do século passado, quando a rodovia cortou a comunidade ao meio e posteriormente o momento da duplicação da mesma, quando novamente os quilombolas foram vitimados.


 Vista Parcial da Praia
Acervo: Kika (2010)


Balneário de Camboriú já foi anunciada em folders e sites turísticos como: “A Copacabana do Sul do Brasil”, e mais recentemente como “A Maravilha do Atlântico Sul”, “A Pérola do Atlântico Sul”, dentre outros. Num dos sites encontrei:

Balneário Camboriú, localizada no litoral centro norte de Santa Catarina, é um dos destinos turísticos mais visitados do Brasil, em especial por catarinenses, gaúchos e paranaenses. Na temporada e nos meses de março e abril também é expressiva a presença de paraguaios, chilenos e argentinos.

Nas duas últimas décadas a cidade passou por um crescimento vertiginoso, hoje a população é superior a 120 mil habitantes, sendo que cerca de 15 mil são estudantes universitários de todo o País e mesmo do exterior. Cada vez mais pessoas com bom poder aquisitivo decidem morar aqui na praia, porque o clima é bom o ano todo e a estrutura de comércio, saúde, educação e lazer bastante desenvolvida.

Na verdade o município ganhou notoriedade na década de sessenta, quando emancipou-se de Camboriú, tendo como arcabouço econômico o turismo, como evidenciou Glória Alejandra:

Balneário Camboriú desde 1959 era Distrito de Camboriú, mas o rápido crescimento populacional e abertura de locais comerciais criaram-lhe autonomia econômica e posteriormente política. Vários hotéis foram construídos, casas, edifícios com apartamentos que eram comprados para morar ou para locar nos meses de verão. Segundo Magda Lee, para Balneário Camboriú o mar foi o elemento motor que possibilitou seu desenvolvimento econômico e turístico. O mar passou a ser visto neste momento, como um local não só de lazer.

É nesta cidade cantada em versos e prosas pela ‘indústria do turismo’ que se encontra uma comunidade remanescente de quilombos, que é o motivo desta breve investigação histórica, sobretudo através das fontes orais, e de alguns documentos disponíveis num dos cartórios da cidade.

A origem do nome da localidade, Morro do Boi, segundo relato dos quilombolas, estaria relacionado com a passagem dos tropeiros, que no passado dirigiam-se do Planalto Central de Santa Catarina para o sudeste. Estes teriam perdido uma rês que caíra num precipício e nunca foi recuperada. Relatos de moradores de vários bairros de Itajaí, cidade vizinha de Balneário Camboriú, corroboram o caminho dos tropeiros.

Na memória dos moradores dos quilombolas do Morro do Boi há um divisor de águas: antes da construção da BR 101 e depois. A BR foi construída no início dos anos setenta cortando a comunidade ao meio, provocando a seca das nascentes naturais, fonte dos seus recursos hídricos, e até hoje não foram indenizados. As lembranças da cachoeira, onde se tomava banho, se lavava roupas, pescava, é constante nas narrativas, quando se pergunta acerca do passado; bem como as brincadeiras com o boi, denominadas boi do campo, que relembra de certa forma as brincadeiras advindas do boi Ápis do antigo Egito, passando pelo mediterrâneo, chegando ao bumba-meu-boi do Maranhão, da polêmica farra do boi catarinense enfim, um fenômeno de longa duração, na expressão de Braudel.

Numa entrevista com a matriarca dona Guida, juntamente com o filho Altair e o genro Acácio, ficou evidente que as benesses do progresso simbolizadas na construção da BR 101 não contemplaram a comunidade em nenhuma das duas vezes, ou seja, no momento da sua construção no início dos anos setenta, tampouco no momento da sua duplicação na década de noventa. Esta entrevista foi realizada no ano de 1998, quando se buscava a organização da comunidade nos parâmetros do conceito de remanescentes de quilombos, segundo os pressupostos legais das disposições transitórias da Constituição Federal de 1988.

Perguntado sobre os moradores antigos, falou-se da família de uns negros de sobrenome Rodrigues, mas que eram apelidados de benguelas, sobretudo o Mané Domingos. Não souberam a razão pelas quais esta família era denominada de benguelas, mas isso indica a ascendência de matriz africana, pois os documentos de compra e venda de escravos falam ou registram escravos da nação benguela. Aliás, algumas famílias, como a de Acácio, herdaram terras de brancos descendentes de antigos senhores de escravos como os Rebello. Os registros de compra, venda e aluguel de imóveis e semi-moventes (como eram tratados os escravos) do Cartório Waltrich contém informações sobre tais transações:

Escritura de contrato de locação de serviço que faz Tomaz, liberto, com o senhor José Joaquim Rebello como abaixo se declara:

Saibam quanto este público instrumento de escritura de contrato de locação e serviço virem, que sendo o ano do Nosso Senhor Jesus Cristo de 1875, aos 24 dias do mês de março do dito ano, em meu cartório compareceram presentes as outorgantes deste instrumento, a saber, como locador José Joaquim Rebelo e como locatário Tomaz, liberto, de cor parda, de idade 25 anos mais ou menos, escravo de Manoel Antonio da Costa, morador do município de Tijucas Grande e reconhecidos de mim Benjamim de Souza Vieira escrivão do juiz de paz das testemunhas abaixo assinada.

Pelo referido Tomaz foi dito e reclamado que hoje podendo dispor de sua pessoa livremente, tem contratado com o dito senhor Joaquim José, digo, o senhor José Joaquim Rebelo pela quantia de duzentos e quarenta mil réis os ditos serviços os quais durará por tempo de sete anos, ficando locador obrigado a tratar o locatário em suas enfermidades logo que restabeleça sendo por mais tempo de mês, será obrigado o locatário a servir por mais tempo te completar os sete anos do contrato (folha 19 v) dando o locador a roupa para o serviço durando o tempo do dito contrato. Ele declarando mais, que poderia alugar a qualquer pessoa dentro desta província com as mesmas condições, e pelo locatário foi dito que aceitaria todas essas condições acima declaradas.

E sendo lido aos outorgantes notificaram e assinaram com as testemunhas Carlos Maria e José Batista de Almeida, e pelo locatário não saber ler nem escrever, assim Lazáro José Rebello todas reconhecidas de mim Benjamim de Souza Vieira escrivão do juiz de paz que escrevi e assino.

Acácio relatou que seu pai fora criado por Tomás Rebelo, de quem herdou as terras, mas sem especificar em que condições seu pai fora criado; mais uma coisa é certa, os membros da família Rebello foram poderosos senhores de escravos na região de Porto Belo, como pude observar nos registros de compra e venda de escravos do cartório de Porto Belo, a exemplo do que se segue:

Escritura de venda fixa de um escravo crioulo de nome Adão, que faz José Silva Rebello, a Antônio Moreira da Silva, como abaixo se declara.

Saibam quantos o presente instrumento de escritura de venda fixa virem, que sendo no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus de Cristo, de mil oitocentos e setenta e um, aos seis dias do mês de abril do dito ano, nesta freguesia do Senhor Bom Jesus dos Aflitos de Porto Belo, termo da Vila de São Sebastião de Tijucas, Comarca de Itajaí da Província de Santa Catarina, em casa de residência de José Silva Rebello, eu escrivão vim a seu chamado, ali comparecem como outorgantes deste instrumento, a saber de uma parte como vendedor José da Silva Rebello, morador no Perequê, e de outra parte como comprador Antônio Moreira da Silva, morador nesta freguesia, reconhecidos de mim escrivão e das testemunhas adiantes nomeadas e assinadas pelos próprios do que dou fé, perante as quais pelo vendedor, me foi dito que ele era, senhor e possuidor de um escravo crioulo de nome Adão, cujo escravo vende com todos achaques novos e velhos presentes e ocultos, à pessoa do comprador, José Antônio Moreira da Silva, pelo preço e quantia de oitocentos mil réis, livre de siza para ele vendedor, cuja quantia de oitocentos mil réis o recebeu o vendedor, do comprador, ao fazer desta em moeda corrente( folhas 07) deste império, e em virtude do bom pagamento transferia na pessoa do comprador Antônio Moreira da Silva, todo o domínio, direito, ação, senhorio que no dito escravo tinha, para agora do presente entre si e seus herdeiros como fica sendo desta data em diante, e se obriga a fazer desta venda boa a todo tempo; e pelo comprador me foi dito perante as testemunhas que aceitava a presente compra com a condições declaradas, em seguida apresentou o bilhete da meia siza pelo teor seguinte:

N°12
Data 29 de março de 1871.

Estavam impressas as armas do império, pagou quarenta mil réis.
Coletoria das rendas províncias de Tijucas em 29 de março de 1871.
João José Vieira Nunes, o coletor.
O escrivão Francisco José dos Prazeres.
Depois desta escrita li as partes outorgantes que aceitaram e outorgaram e assinaram, o comprador e o vendedor, sendo testemunhas presentes, Francisco Machado Airoso e João Pereira da Cruz, reconhecidos de mim Antônio Sálvio de Souza Medeiros escrivão do juiz de Paz que escrevi

No mesmo Cartório Waltrick foi encontrado referências da família Da Graça, sobrenome da matriarca Guida, guardiã da memória da comunidade, indicando que a ascendência da mesma família está relacionada com escravos pertencentes a senhores da região.

Dona Guida e José Bento
Acervo: José Bento

Antes de a comunidade ser cortada pela BR 101, o Morro estava isolado, era um ‘verdadeiro sertão’ (corruptela de desertão), razão pela qual alguns moradores deixaram a localidade e mudaram-se para Itajaí(SC), Curitiba(PR), Santos(SP), Paranaguá(PR), Itapema(SC). Na expressão dos que ficaram: “saíram porque na roça não dava nada”, “era um local isolado” e “nunca mais voltaram”. Estas lembranças somam-se as dos moradores antigos já falecidos: Olga, Lotário, Canuto, Maneca, Siqueira, Pedro Maria, Ventura, entre outros.

A produção era de subsistência, como uma das características das comunidades remanescentes de quilombos de diversas regiões do Brasil. No caso específico, plantava-se a mandioca, café, milho, feijão, banana, cana. Comprava-se mesmo só o que não era produzido, como: sal, açúcar refinado para a confecção de guloseimas especiais, pois para o dia-a-dia, usava-se o açúcar mascavo por eles produzido. Trocava-se a produção local no comércio de Camboriú ou de Itapema, por carne fresca de gado, por tecido. Foi o momento de lembrar-se dos comerciantes tais como, Teotônio Passinho de Itapema e do João Morais do armazém de Camboriú, e do Isidoro Garcia, também de Camboriú.

Não há hoje no Morro mais nenhum dos engenhos de farinha ou de açúcar do passado, mas as memórias dos mais velhos que lá residem apontam onde eram localizados, fazendo-os lembrar com nostalgia o fabrico da farinha, da cachaça, bem como das festas, sobretudo na época de natal e páscoa.

Há na comunidade a senhora Gervásia, que de certa forma é temida por ser da umbanda, uma vez que a grande maioria professa a fé cristã católica, embora reconheçam que os antepassados tenham praticado religiões de matriz africana. Dona Guida disse que aprendeu a benzer com o seu avô, o ‘velho’ Leandro Cristino da Conceição, que morava em Camboriú, além de ter herdado do mesmo o conhecimento das plantas medicinais. E mais, Fabriciano, irmão de dona Guida, residente em Itajaí, é babalorixá. Ele, juntamente com dona  Guida, segundo seu filho Altair, em tempos passados andavam atrás de ouro enterrado que os sonhos e visagens vinham lhes revelar. Confessam entre risos que nunca encontraram por falta de coragem.

Outro registro que aponta para uma religiosidade híbrida é no que diz respeito ao rito de passagem da morte. Meses antes da entrevista um filho de dona Guida falecera, ocasião em que foi possível descobrir um rito praticado no presente que vem dos antepassados, conforme a descrição feita pela professora Ana Elisa que acompanha a comunidade no processo de reconhecimento da mesma como Comunidade remanescente de Quilombo. Diz ela:

Também tive contato com uma tradição da casa deles em dia de sepultamento. Depois que acontece o velório, que sempre fazem em casa e o corpo sai em cortejo fúnebre, a esposa do falecido, ou quando solteiro, a mãe, limpa a casa, atenção especial ao chão que é varrido e fecha toda a casa - portas e janelas -  que permanecem fechadas por sete dias.  No sétimo dia, antigamente rezavam o terço, e hoje, é rezada a missa de sétimo dia. Então abrem a casa e tudo volta à rotina, pois nesses sete dias a casa fica sempre fechada em sinal de luto, entram e saem somente pela porta dos fundos da casa. Fazem isso, pois acreditam que, se o espírito da pessoa que morreu resolve voltar para casa, encontra portas e janelas abertas, entrará e não descansará  nem dará sossego aos que moram na casa. Porém, se ao retornar encontrar a porta fechada, descansará no lado de fora da porta e seguirá seu caminho em paz.

As lembranças do trabalho na comunidade no passado remetem-se ao mutirão e ao sistema de coivaras mediado pelas cantigas de trabalho, características encontradas em outras comunidades remanescentes de quilombos pelo Brasil.

Quem trafega pela BR101, em direção do sul para o norte do Estado de Santa Catarina e vice versa, ou quem veraneia na “Maravilha do Atlântico Sul” raramente sabe das histórias subterrâneas dos africanos na condição de escravos e seus descendentes que existem no Morro do Boi. Histórias que aos poucos ressurgem do esquecimento qual Fênix das cinzas e que faz lembrar um provérbio Acã: “nunca é tarde para voltar e recolher o que ficou para traz”. Em minha opinião é isto que a comunidade quilombola do Morro do Boi está fazendo lentamente com o auxílio de alguns intelectuais orgânicos ligados às instituições, que buscam a plena cidadania dos historicamente discriminados na sociedade brasileira.

Referências:

LUNA, Gloria. Alejandra Guarnizo.  As ondas e o tempo: Uma análise sobre a transformação de um território. Praia brava (1970 – 2003), Itajaí, SC. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2004 (Dissertação De Mestrado Em História).
BASTOS, Rafael José de Menezes (Org.) Dionísio em Santa Catarina: Ensaio Sobre a Farra do Boi. Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura; UFSC, 1993.
FLORES, Maria Bernardete Ramos. A farra Do Boi: Palavras, sentidos, Ficções. Florianópolis: UFSC, 1997.
Cartório Waltrick. Livros de Notas, n. 08.
Cartório de Porto Belo. Livro de Registro de Compra e Venda de Escravos, 1867.



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